
Motorizadas:
Mulheres no Volante
Entenda pelo ponto de vista feminino a evolução da profissão de motorista dentro do conceito de uberização do trabalho, quais as consequências e impactos por trás dessa nova atividade e quais os planos e projetos para o futuro dessas profissionais.
“Eu sempre aprendi com meu pai que não devemos trabalhar pelo dinheiro e, sim, pelo que gostamos. Eu procuro passar isso sempre pro meu filho."
Tânia Viana, entrevistada dessa matéria
Do Táxi ao Aplicativo
Elisângela de Oliveira Camilo é uma pessoa carismática e sorridente. Com 44 anos, ela reside na zona leste de São Paulo com a mãe Maria Aparecida De Oliveira Camilo, 64 anos, e seu sobrinho Kevin Elias de Oliveira, 20 anos. Como muitos brasileiros, teve a vida transformada com a chegada da pandemia de Covid-19. Foram três anos como motorista de aplicativo, mas desde abril parou de exercer a profissão. Asmática e com hipertensão, ela faz parte do grupo de risco da doença. Atualmente, Elis vende biscoitos e doces mineiros como forma de obtenção de renda e não tem ideia de como será o seu futuro.
Elisângela também sempre foi muito laboriosa e nunca ficou parada. Dentre os muitos empregos, já foi taxista. Contudo, antes de ser motorista de aplicativo, ela trabalhava como representante de vendas do ramo de telefonia de celular e recebia por comissão: “as vendas caíram muito devido ao aumento do interesse dos clientes pelo pré-pago”. Então em 2017, ela juntou sua paixão por dirigir com a dificuldade de encontrar emprego em outra área e alugou um carro pela Localiza. “O aluguel do carro na época era 1400 reais mensais fora o gasto com combustível”, ela relembra.
O mercado de transporte particular pago de passageiros tem uma história na cidade de São Paulo. Os primeiros veículos começaram a circular no final do século XIX e concentravam-se no Largo da Sé e no Pátio do Colégio, região central da cidade. Segundo a Federação dos Taxistas Autônomos do Estado de São Paulo (FETACESP), São Paulo tem cerca de 40 mil frota de táxis, mas o cenário está mudando desde a chegada dos aplicativos. Pela primeira vez desde 1967, a pesquisa Origem e Destino do Metrô começou a medir a presença de viagens acionadas por aplicativos. Nessa categoria, em 2018, foram 362 mil viagens por dia. Uma das explicações seria o baixo custo e a possibilidade do uso de pagamento via cartão de crédito e débito pelo aplicativo.
Para a FETACESP a concorrência é desleal: “hoje o taxista tem que cumprir várias exigências do órgão municipal e o mesmo não acontece com o motorista de aplicativo, isso acaba virando terra sem lei”. No entanto, a Federação também cita as vantagens da profissão como exclusividade no uso da faixa de ônibus, descontos na compra do carro e isenção do IPVA em alguns estados: “o desconto pode chegar até 30% e há juros mais baixos para financiamento, no caso de São Paulo também há a isenção do IPVA e o ponto do taxista ainda é um chamariz para o serviço, trazendo uma boa clientela.” Elis também concorda com essa questão: “essa categoria só compensa para quem é dono do alvará e do carro”.
Em 2016, foi autorizado a circulação de taxis nos corredores de ônibus seguindo algumas condições para a cidade de São Paulo. A portaria n.º 084/16-SMT.GAB de 2016 determina que os taxis podem circular com passageiro em qualquer horário e dia da semana. Os corredores são faixas e pistas exclusivas de ônibus do Sistema de Transporte Público. Essa medida garantiu uma corrida 30% mais rápida do que um carro comum de acordo com um estudo divulgado pelo instituto Data Science & Business Intelligence, da Easy. Vale ressaltar que, em 2018, foi sancionada uma lei, pelo então presidente Michel Temer, que determina que são os municípios que devem regulamentar a atividade dos aplicativos.
Com a chegada deles, o relacionamento entre passageiros e motoristas passou a ter mais confiança e uma experiência agradável, pois o cliente não precisa mais se preocupar com o trajeto ou em ter dinheiro vivo. Entretanto, a democratização do transporte pode funcionar pensando no motorista. Hoje, essas empresas de tecnologias estão crescendo e arruinando as concorrências.

Conceito de Uberização
Tânia Emília Viana Soares da Silva tem 55 anos e mora em Taboão da Serra com o esposo Osvaldo Soares da Silva, 59 anos, seu filho Vinicius Viana Soares da Silva, 22 anos, e dois cachorros. Formada em administração de empresas e secretariado, foi secretária durante 13 anos. Passava muito nervoso e estresse então um dia resolveu pedir as contas. Em 2018, ela já tinha uma loja de churros com o seu marido quando sua mãe sugeriu que ela virasse motorista de aplicativo. No começo, Tânia teve receio porque não via muitas mulheres na profissão, mas após um mês de trabalho ela gostou da atividade.
Mas nem tudo é um mar de rosas e ela atravessou um período difícil e delicado recentemente. “Em 2019, eu tive que fechar a loja de churros e precisei me mudar. Antes morávamos na zona leste, na casa que meu esposo nasceu e foi criado, mas com a dificuldade financeira e problemas de saúde dele nos mudamos para o quintal da minha mãe aqui em Taboão”, ela relembra. Tânia confessa que o trabalho como motorista a ajudou passar por essa crise, além do apoio do seu filho e familiares: “quando eu entrava no carro eu tinha que deixar os problemas em casa. E, claro, ver outras pessoas me fazia perceber que a vida não era só aquele meu mundo”.
O carro de Tânia também é alugado e durante a pandemia ela não podia se dar ao luxo de ficar parada, então conversou com a locadora e conseguiu um desconto de 50% no aluguel do veículo devido ao baixo movimento de pessoas. Ela também comenta que começou a trabalhar recentemente na sua própria cidade: “nós motoristas, principalmente as mulheres, normalmente procuram os bairros nobres pra trabalhar por conta do medo. No início eu também fazia isso, mas a pandemia me mostrou que eu não precisava ficar nessa área, que eu tinha como ganhar dinheiro em qualquer lugar. Então quem me sustentou na pandemia foi a periferia, não a região nobre. A classe média estava com medo de você chegar perto, estavam todos dentro de casa”. Atualmente, a administradora não se vê trabalhando em outra área e desabafa que sua meta é usar o aplicativo pra guardar dinheiro: “quero fazer uma poupança, um pé de meia, mas ainda não consegui me organizar. Estou pretendendo”.
A uberização é um termo que se refere a processos e novas formas de controle, gerenciamento e organização do trabalho que redefiniu as relações trabalhistas, flexibilizando-as. Na uberização, o trabalhador é empreendedor de si e subordinado a um aplicativo que liga prestadores de serviços a consumidores. Essa intermediação é feita por uma empresa que fica com uma porcentagem dessa troca. O conceito de uberização nasceu para nomear condições de trabalhos flexíveis, informais e sob demanda.

Essa expressão faz menção ao particular modelo de organização do trabalho da Uber, pioneira nesse tipo de negócio. A empresa foi criada em 2010 com a missão de conectar motoristas (parceiros) a seus clientes (passageiros) através de sua plataforma digital. Apesar de ter relação com atividades de transporte urbano, ela se auto define como uma empresa de tecnologia e não de transportes. Essa definição é uma estratégia para disfarçar as relações de empregos e desassociar qualquer vínculo empregatício.
A Uber conta com a disponibilidade do trabalhador, mas o utiliza apenas quando necessário e de forma controlada automaticamente. Isso acontece porque aplicativo tem a possibilidade de mapear e gerenciar a oferta de trabalho sob demanda, ou seja, o trabalhador não tem qualquer chance de negociar ou influenciar na distribuição do seu próprio trabalho. Além disso, as regras sobre a distribuição do trabalho, bonificações e valores não são claras ou pré-definidas.
Lais Gabriele Nogueira, 31 anos, trabalhava como professora em um Centro de Educação Infantil (CEI), quando, por volta de agosto de 2019, foi demitida devido cortes na empresa. Apenas com o auxílio desemprego, ela viu no trabalho como motorista de aplicativo uma forma de aumentar seu rendimento, então em setembro daquele ano ela comprou um carro por R$ 1000 mensais e decidiu arriscar. Entretanto, a experiência não foi positiva: “não compensava. Era um trabalho muito cansativo, estressante e desgastante. Ir ao banheiro era muito ruim e o gasto com combustível era muito alto”. “Eu não achei vantajoso. A profissão deteriora o carro com o tanto de km rodado, fora a manutenção do veículo. Deveria ter uma ajuda de custo em relação a isso”, ela complementa. Com o aluguel de R$ 800,00 da casa e um filho de 10 anos, Lais afirma que a renda que ganhava com a Uber e 99 também não a agradaram: “eu podia ganhar mais dinheiro trabalhando a noite, mas não me sentia segura”. Formada em pedagogia, em janeiro desse ano Lais conseguiu retornar a sua área atuando como professora de educação infantil em um colégio particular e deixou a carreira de motorista para trás.
Esse modelo da Uber e adotado por outras empresas traz impactos como uma precarização nas relações de trabalho e a perca de garantias e direitos trabalhistas. O Estado se mostra passivo em seu papel de conter essa exploração passando para os municípios a regulamentação. Apesar de tudo, não devemos rejeitar essas novas tecnologias, mas é importante analisar com um olhar mais crítico sobre seus impactos na sociedade.
Reforma Trabalhista e a Nova Informalidade
Formada em Psicologia desde 1993, Erika Cristina Eduardo Alves da Silva, 51 anos, sempre trabalhou na área de recursos humanos, mas viu suas perspectivas mudarem quando, em 2016, foi demitida. “Eu mandei muitos currículos, mas com a minha idade a dificuldade de recolocação no mercado é muito maior”, ela relembra. Ela conta que abriu seu certificado de microempreendedora individual e trabalhou durante esse tempo prestando serviço na área de recrutamento e seleção para as empresas como freelancer. Em 2019, por meio de um amigo, foi aconselhada a ser motorista de aplicativo como mais uma forma de obter uma renda, então começou na atividade em agosto.
Hoje, ela já realizou mais de mil viagens pela Uber e também utiliza os aplicativos da 99 e da Lady Driver, um app que conecta mulheres motoristas com passageiras. Para Erika a iniciativa da Lady é boa, mas só funciona em bairros de classe média de São Paulo: “é um mundo rosa. No fundão da periferia não pega”. Ela reside no bairro Vila Nova Cachoeirinha, zona norte da cidade, com seu filho Erick Eduardo Alves da Silva, 21 anos, e seu esposo Adalberto Alves da Silva, 55 anos, mas está passando pelo processo de divórcio. Sua mãe Neuzeli Arruda Alves Eduardo, 72 anos, e sua tia Neide Aparecida Arruda Alves, 63 anos, também residem com ela, mas só durante alguns meses porque depois retornam pra morar com sua irmã em Mato Grosso do Sul.
A pandemia também atrapalhou os planos de Erika. Entre abril e junho teve que ficar um tempo parada devido ao risco de exposição da sua mãe e tia à doença: “durante esse tempo minha mãe, que é aposentada, me ajudou nas despesas financeiras e eu também me cadastrei no auxílio emergencial do governo”. Quando retornou para as ruas percebeu que o movimento ainda estava fraco: “começou a ter uma melhora a partir do final de julho e começo de agosto”. “A pandemia acabou com muitos sonhos e com muitas perspectivas. A COVID-19 levou muita gente, inclusive alguns amigos”, ela confessa.
Para entender os impactos dessa nova tecnologia na sociedade, é necessário conhecer a legislação trabalhista brasileira. Após três anos da vigência da Lei 13.467/2017, nomeada como Reforma Trabalhista, a informalidade tem batido recordes e a desigualdade socioeconômica tem aumentado no país. A reforma está diretamente relacionada a esse contexto de informalidade, assim como a redução nos investimentos do Estado para aumentar a geração de empregos formais que ajudam na economia.
A reforma trabalhista alterou 117 artigos da legislação relativa ao trabalho. Dentre as novas modalidades de organização, podemos observar o teletrabalho que são atividades realizadas fora do espaço físico da empresa e que podem ser organizadas em rede, ou seja, pode-se utilizar as tecnologias de informações. Essa legislação, segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT), possibilita a transferência de parte dos custos e dos riscos da atividade econômica ao empregado. Segundo a Constituição Federal de 1988, essas leis violam os direitos dos trabalhadores previsto no art. 7, incisos IV, VI e VII:

Além disso, essa transferência de riscos e custos estão se generalizando para novas ocupações como motoristas de aplicativos. A reforma trabalhista deu domínio as empresas para que elas possam dispor de uma mão de obra sem limites de jornada de trabalho, sem direito a férias, entre outras proteções e garantias. No caso dos aplicativos, o presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto 9.792/2019, que obriga os motoristas dessas plataformas a contribuírem com o INSS. Eles podem optar por ser microempreendedor ou contribuinte individual.
Dessa forma, aumentou o número de microempreendedores individuais (MEIs) que em março de 2020 já contava com cerca de 9 milhões de pessoas, segundo dados do Portal do Empreendedor do governo federal. Nos últimos 5 anos, o número de MEIs no país já cresceu mais de 120%. O programa foi criado para incentivar a formalização de pequenos negócios e de trabalhadores autônomos, mas tem se transformado também em opção de ocupação temporária, o chamado “bico”. Isso ocorre porque quem faz a abertura do CNPJ pelo MEI conta com a cobertura de benefícios do INSS (Instituto de Previdência Social) como auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e salário-maternidade para as mulheres. Ou seja, uma proteção em caso de acidentes. No Brasil, estima-se que 5,5 milhões de pessoas trabalhem para esses aplicativos de serviços, segundo uma pesquisa do Instituto Locomotiva.

Em relação aos impactos da informalidade é possível observar que esses trabalhadores não contribuem para a Previdência Social e nem possuem benefícios como FGTS, férias, décimo terceiro, além de arcar com todos os custos da atividade. Com tamanha massa de trabalhadores que deixam de contribuir com o INSS, a previdência social do país está sendo afetada porque todos precisam pagar a conta, ou seja, os contribuintes terão de arcar com a aposentadoria dos informais.
O setor informal é menos produtivo e quando ele tem um aumento no número de trabalhadores, automaticamente a produtividade do país diminui. O setor formal é 4 vezes mais produtivo que o informal. Esse cálculo da produtividade na economia leva em conta o valor adicionado, usado para medir o PIB (todo valor gerado na economia), e o total de horas trabalhadas. Isso explica porque o rendimento médio real habitual ficou estável na comparação trimestral e na anual, no valor de R$ 2.375, segundo dados do IBGE.
Esse impacto na dinâmica do PIB, um dos termômetros do crescimento da economia, acontece porque entre os informais o rendimento médio é menor e, consequentemente, o poder de compra também. Se a pessoa tem um salário fixo por mês, ela consegue se comprometer com dívidas de longo prazo, como financiamentos, para compra de carros ou imóveis, e empréstimos no banco.
Diante desse cenário, o aperfeiçoamento na legislação seria uma medida para aumentar a produtividade e aquecer a economia. Consequentemente, a informalidade também cairia e teria maior redução à medida que postos de trabalho formais fossem criados gradualmente. Entretanto, é inegável que os aplicativos de serviços vieram para ficar e a grande pergunta é sobre o que fazer para criar uma legislação que regulamente essa atividade.
Profissão: Motorista
Em um cenário de redução nos postos de trabalhos formais ou com remunerações baixas é comum que o trabalhador venda a sua força de trabalho para os aplicativos. Não é só uma opção que esse profissional faz, mas é um resultado de um contexto socioeconômico de crise e recessão. Em 2018, só nas regiões metropolitanas, 18 milhões de brasileiros usaram regularmente aplicativos para ganhar algum dinheiro, segundo levantamento realizado pelo Instituto Locomotiva.
Para Erika Cristina as vantagens que o trabalho como motorista lhe proporciona são a flexibilidade de horário, o pagamento semanalmente das viagens de cartões e da possibilidade de lidar com pessoas: “muitos passageiros entram e me contam seus problemas, quando falo que sou psicóloga aí é quase uma seção de terapia”. Para a administradora Tânia Viana a flexibilização do horário também é sua maior vantagem na profissão: “hoje eu tenho tempo para acompanhar minha mãe no médico, para ficar com meu marido, antes eu não tinha tempo pra eles”.
Em relação a rotina no aplicativo, Erika gosta de trabalhar a partir do meio dia. Ela conta que almoça em casa e leva consigo algumas frutas, bolachas, pães para comer durante o dia e evitar gastar com comida na rua. Quando chega em casa, por volta das 21h, costuma ir descansar. Já o domingo é seu dia de descanso e normalmente ela separa a terça-feira para os serviços domésticos. Para Tânia Viana, o horário da noite é seu melhor horário de trabalho e costuma chegar em casa por volta das 2h da manhã. Ela também comenta que leva lanches para comer durante algumas pausas entre as viagens. O domingo também é o seu dia de folga e de dedicação para a família: “pode ser dia dos pais, estar no dinâmico e ganhar 5x mais ainda vou preferir ficar com eles”. Quanto as horas trabalhadas são em torno de 10 a 12 horas por dia tanto pra Erika como Tânia.
Ainda assim, a psicóloga gostaria de voltar para a sua área e manter o trabalho como motorista apenas para complementação de sua renda: “meu desejo é trabalhar com psicologia hospitalar em pacientes terminais”. Já Tânia que começou a fazer Direito, mas trancou no ano passado devido problemas financeiros, sonha em voltar a faculdade: “Eu tentei quatro vezes passar na USP, mas não consegui e desisti. Meu filho me incentivou e acabei voltando pra faculdade no segundo semestre de 2017 pra fazer o curso que eu tanto amo”.
O sociólogo Francisco de Oliveira ressaltou em sua obra “Crítica à razão dualista” que os salários eram considerados um “custo” para o capitalista, mas quando a remuneração se torna exclusivamente dependente do trabalhador e da efetivação do valor dos produtos-mercadorias, ela deixa de ser um custo. Segundo um estudo do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), os motoristas privados dos EUA perdem 30% do dinheiro que ganham quando somam os gastos com o carro.

A psicóloga Erika Cristina possui carro próprio, mas ainda está quitando as mensalidades que custam em média R$ 1000,00. Ela possui seguro que está embutido no preço do veículo. Quanto ao gasto com combustível ela informa que são de 50 a 70 reais por dia: “já em relação aos quilômetros rodados são de 130 a 200 km em média por dia”. Já para a administradora Tânia Viana que tem o carro alugado esse valor é cerca de R$ 1800 mensais. O gasto de gasolina, por sua vez, é em média 80 a 100 reais por dia: “na pandemia esse valor caiu pra 30 a 50 reais”.
Os motoristas de aplicativos precisam se preocupar em onde fazer as suas necessidades fisiológicas e onde irão se alimentar, além disso durante uma corrida e outra precisam esperar, às vezes, por muitas horas antes de encontrar um passageiro. Eles também precisam lidar com assédio, medo de roubos ou sequestros, probabilidade de acidentes, estresse do trânsito, entre diversos fatores. E também não recebem qualquer foto ou informação sobre o passageiro antes da corrida, pois é um método da plataforma para evitar discriminação. “Na Uber não aparece o endereço do usuário, apenas uma localização aproximada. Eu prefiro a 99 porque eles permitem mostrar o endereço do passageiro e assim consigo evitar zonas de risco”, comenta a psicóloga Erika Cristina.
Tânia Viana confessa que pensa em comprar um carro automático devido as fortes dores causadas por longas horas dirigindo: “eu sinto muita dor nos braços, nos pulsos e nos joelhos. Tento não tomar tantos remédios contra a dor pra não viciar até porque essas dores são por conta da profissão”. Erika Cristina também confirma que as desvantagens da profissão são os riscos de assaltos, muitas horas sentada e da dificuldade de ir ao banheiro, principalmente por ser mulher que o risco de contaminação em comparação com os homens é maior: “eu normalmente vou aos supermercados porque são mais higiênicos”.
Quanto a segurança as duas são unanimes em afirmar que contam com seu “sexto sentido” e com sua “intuição feminina”. Erika nunca foi assaltada e nem teve o carro batido. Já Tânia teve o carro batido por um motorista que possuía seguro então o veículo foi consertado rapidamente e sem grandes dores de cabeça. E ela ainda complementa sobre sua segurança: “Não julgo ninguém da periferia até porque eu também moro ali. Se eles não prestam, então eu também não. O bandido está em qualquer lugar”.
Em suas propagandas, a Uber utiliza o discurso que o motorista é o empreendedor de si mesmo, ou seja, não tem chefe, tem liberdade de horário e pode ter ganhos progressivos à medida que trabalhe mais horas. A empresa também utiliza outros métodos de controle que não são tão claros. Os motoristas não podem rejeitar muitas corridas se não podem ser suspensos ou até mesmo desligados da plataforma, além disso o motorista perde algumas corridas vantajosas, ou seja, longas e mais caras. Os clientes atribuem notas de avaliações e comentários sobre a corrida, os motoristas precisam obter o mínimo de 4,6 para não serem desligados ou suspensos. Essa avaliação só se destina a Uber e não aos clientes, visto que não há possibilidade de escolha de um motorista pela sua nota.
Para a administradora Tânia Viana “a Uber leva a nota de avaliação muita a sério”. Ela afirma que quem faz muitas viagens com boas avaliações ganha alguns privilégios como receber passageiros com boas pontuações e as melhores corridas que são aquelas que pagam mais: “se você é um motorista Diamante raramente o Uber irá te mandar pra comunidade”. Erika Cristina também afirma que a Uber só permite que o motorista fique até 12 horas logado e após esse período é bloqueado: “eles também só deixam você recusar duas viagens, na terceira eles aplicam uma punição que não deixa você receber viagens durante um tempo”. Mesmo assim, a psicóloga trabalha com metas e a sua é de, no mínimo, R$ 200,00 por dia: “em um dia bom eu consigo em torno de 250 reais, mas nunca volto pra casa sem atingir minha meta, caso contrário o dia não compensou”.
Outras normas que a empresa estabelece são seguir o preço da corrida determinado pelo aplicativo, não priorizar atendimentos a pessoas conhecidas, não passar o número de telefone pessoal para realizar corridas particulares e, claro, não divulgar outros aplicativos, mesmo que na prática a maioria dos motoristas trabalhem para dois ou mais aplicativos ao mesmo tempo.
Caso não cumpra as normas estabelecidas pelos aplicativos, os motoristas podem ser desligados pela plataforma sem aviso prévio, além disso todas essas regras que esses profissionais precisam seguir só reforçam que o trabalhador é autônomo, mas é a empresa que define suas metas e o pune caso não alcance. Portanto, o discurso de o trabalhador ser o “próprio chefe” não se sustenta.
Mulheres no Volante
Dentre os muitos perigos da profissão, assalto e roubo são os maiores deles. É o caso de Jessica Cardoso Reis, 29 anos, que foi assaltada em setembro enquanto passava pela Avenida do Estado, na altura do Ipiranga. Ela contou que estava parada no farol aguardando a abertura do semáforo quando um ladrão se aproximou do veículo, quebrou o vidro e levou o celular: “aconteceu muito rápido, não consegui nem ver o rosto”. Jessica que possuía seguro no aparelho estava aguardando a seguradora enviar um novo no momento da entrevista, mas que o prazo era de 30 dias.
Jessica Reis trabalha com os aplicativos da Uber e 99 e, pra complementar a renda, realiza vendas de bolos sob encomenda e também durante as viagens. Cada bolo de pote custa R$ 6,00. Por dia, ela conta que trabalha cerca de 12 horas e lucra em torno de R$ 200 a R$ 300. Anteriormente, Jessica trabalhava em um bar, mas ele foi vendido e ela não se deu bem com o novo dono então certo dia pediu as contas. Ela diz que sempre gostou de trabalhar com público, então conciliou isso mais o gosto por dirigir e a falta de outras oportunidades de trabalho pra começar a ser motorista de aplicativo em 2019.
Sobre sua rotina na profissão ela começa a trabalhar por volta das 07h da manhã e vai até as 19h da noite. A motorista conta que costuma passar em casa para almoçar, mas há dias que não consegue então acaba comprando alguma coisa pra comer na rua como um lanche ou salgado: “meu dia é super corrido, trabalho de segunda à sábado e tem dias que almoço, tem dias que não. Chego em casa super cansada e faço os afazeres de casa”. Já a ida ao banheiro ela confessa que é muito difícil porque não gosta de usar qualquer local: “às vezes eu chego em casa com a bexiga doendo de tanto segurar”.
Jessica também confessou que sente muitas dores nas pernas devido as muitas horas trabalhadas: “inclusive uma perna está mais inchada que a outra. Fui no médico e fiz vários exames, mas não descobrem o que é. Esse inchaço começou depois que eu comecei a trabalhar como motorista, mas depois que a pandemia começou eu parei de ir no médico, mas pretendo retornar em breve”.
Como muitos brasileiros no país, sua casa de três cômodos em São Caetano do Sul é alugada por cerca de R$ 900,00 mensais. O aluguel do carro é cerca de R$ 1400 e possui seguro, mas é franquiado então quando o vidro do carro foi quebrado pelo assaltante ela precisou se responsabilizar com até R$ 1800,00 do valor que é o teto da franquia, o restante é pago pela Locadora Movida. Já em caso de roubo, essa franquia aumenta pra R$ 6.000,00. “A manutenção do veículo é a única por conta da empresa”, comenta Jessica.
A motorista tem um casal de filhos, um menino de dez anos que mora com o avô e uma menina de quatro que mora com ela e seu marido. Jessica recebeu o auxílio emergencial do governo de forma automática porque recebia o Bolsa Família há dois anos. Ela relata que não ficou parada durante a pandemia, mas que diminuiu seu tempo trabalhando devido ao baixo movimento. Por causa das vendas de seus bolos ela possui MEI aberto e contribuiu com o INSS. Já sobre o futuro diz que não faz planos, mas que pretende continuar no aplicativo.
Hoje, mesmo com os avanços da sociedade, a presença feminina em ambientes profissionais que normalmente são vistos com homens atuando causam, ainda, estranheza e questionamentos em nossa sociedade atual. O volume de mulheres como motorista de aplicativo ainda é baixo em comparação com o de homens devido a tabus como fragilidade feminina ou preconceito que a mulher não sabe dirigir. Um estudo publicado pela Uber em 2015 revelou que apenas 14% dos condutores eram mulheres.
Diante desse cenário, é importante ressaltar todos os ricos que ser mulher na profissão podem trazer. Segundo uma a pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, publicada em 2019, uma em cada três brasileiras já sofreu algum tipo de violência. O assédio é o principal: 36% das entrevistas informaram que ouviram comentários desrespeitosos ao andar na rua.
Para a psicóloga Cristiane Elia Salge, formada pela Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL) e especialista em Terapia Comportamental Cognitiva pelo Centro de Especialização em Terapia Comportamental Cognitiva (CETCC), os efeitos que as mulheres podem sofrer após passar por um caso de assédio incluem desenvolvimento de transtorno mental como depressão, transtorno do pânico, estresse pós traumático e transtorno de ansiedade generalizada. “As mulheres também podem sentir culpa, desamparo, humilhação, vergonha e podem desenvolver estresse pós traumático em que nos níveis de ansiedade se alteram de forma insuportável. Esse transtorno apresenta comorbidades como depressão, transtorno obsessivo compulsivo e uso abusivo de substâncias”, explica a psicóloga. Ela também destaca que alguns sintomas do estresse pós traumático são evitar pensamentos, sentimentos ou sensações físicas do evento traumático e esforço para evitar pistas externas como pessoas, locais, conversas e atividades que despertem as memórias do evento. “No caso da mulher motorista ela pode deixar de trabalhar e afetar sua renda financeira, além do emocional todo da família”, completa Cristiane Salge.
Elisângela Camilo confessou que já passou por alguns casos de assédio quando trabalhava como motorista de aplicativo. Em uma das situações, ela levava três passageiros jovens que voltavam de uma balada, dois homens e uma mulher. Já bastante alterados, faziam piada de mal gosto durante a viagem: “depois de algum tempo, um deles colocou a mão na minha perna e comentou sobre o fato de eu ser mulher. Imediatamente parei o carro e pedi para eles me respeitarem ou iriam descer do veículo. Quando a viagem acabou eu cheguei a reportar a Uber, mas não dá pra saber o que aconteceu. Um dos jovens até comentou que sua nota já era baixa e que não se importava. Hoje em dia tem um botão de alerta que nunca cheguei a usar”.
Para Cristiane Salge a psicologia pode ajudar às mulheres a lidar com esses eventos traumáticos tanto na clínica como também através do Conselho de Classe colaborando com elaboração de políticas públicas. “Apenas com muita campanha e debates é possível combater a cultura do estupro tão presente em nosso país. Dependendo da região essa cultura é mais legitimada”, complementa a psicóloga. A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgados em 2015. A cultura do estupro foi um termo cunhado na década de 70 para representar um ambiente em que o estupro é predominante e no qual a violência sexual contra as mulheres é normalizada na mídia e na cultura popular como difamação das mulheres, objetificação de seus corpos e glamourização da violência sexual. “Na clínica é muito comum mulheres trazerem à tona abusos durante a infância por familiares como tios, cunhados, meio irmãos, e umas das piores mágoas referem-se em como o restante da família acolhem o abusador: ele continua participando de reuniões familiares e é cobrado da vítima que o respeite”, exemplifica Cristiane Salge.
Entre as motoristas entrevistadas muitas destacaram que os passageiros quando veem uma mulher perguntam sobre maridos, filhos e afazeres domésticos e, normalmente, fingem terem mais filhos do que normalmente tem ou que são casadas. Também comentam que muitos clientes gostam e que muitas passageiras se sentem mais seguras quando percebem que a motorista também é mulher. Elas também estacaram que costumam usar vestimenta adequada e se policiarem em relação ao conteúdo e tom da conversa a fim de evitarem o assédio, mas todas reclamam que os aplicativos não passam quase nenhuma informação sobre os passageiros.
Elisângela Camilo relembrou um episódio em que um passageiro perguntou sobre informações pessoais dela e fez um comentário machista: “uma vez eu peguei um passageiro que quis ir no banco da frente, ele ficava me olhando de cima a abaixo. Depois de algum tempo perguntou se eu era casada e eu menti dizendo que sim e que tinha cinco filhos. Ele comentou que eu era muito corajosa em ser motorista e que se fosse meu marido nunca iria me deixar trabalhar. Graças a Deus a corrida acabou rápido”. Ainda assim, Elis gostava de trabalhar como motorista: “é uma liberdade, poder estar na rua, de conhecer pessoas, de conversar com elas, mas a grande questão é o perigo”.

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